sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Señor Alberto

Eu nunca tenho em mãos a chave para abrir a portaria do prédio aqui em Montevidéu. Quem me salva está lá dentro, sentado em uma cadeira dura e cercado por um balcão preto. Talvez fosse o caso de comprar uma poltrona por causa do conforto. Eu poderia sugerir isso na reunião do condomínio, desde que eu soubesse dos eventuais encontros entre os vizinhos e desde que eu não fosse um viajante de estadia curta.

Onomatopeia de portão se abrindo. Quem mais uma vez me salva já se levantou e está com as palmas das mãos abertas e braços esticados em direção ao elevador, que já está a minha espera no térreo. Sorrio para a cena inusitada e recebo uma breve gargalhada rouca. “Bueno, como andas??”, diz o senhor Alberto, 77 anos, 14 dos quais dedicados ao apartamento de 15 anos de idade na rua Benito Blanco. Sua voz pode ser escutada de longe, até mesmo do segundo andar.

Ele tem, confesso, essa mania de me apontar os caminhos. Quando estamos sem assunto e aguardo o elevador pisar no “T”, pergunta se estou estudando. Respondo afirmativamente e ele faz uso magistral da réplica: “Hay que estudiar! Es la llave para todo”. Sorrio, nos despedimos e subo.

Um dia desses eu descia e lá estava señor Alberto dentro do elevador. Era seu aniversário e levava uma garrafa de vinho no encontro do braço com o sovaco. Parabenizei-o e recebi um aperto de mão e abraço sinceros. Ele tem um apreço natural pelos brasileiros e, é bom frisar, nutre uma certa antipatia pelos argentinos. Como larga às 22h, tem tempo para acompanhar as produções brasileira na tv. “Novela brasileira! Está muy buena”, diz com tons de entusiasmo quando me vê chegar à noite.

Invariavelmente, Señor Alberto puxa conversa sobre como está frio, feio ou bonito o tempo lá fora. Não gosta de falar muito sobre o Danúbio, seu time do coração, talvez porque não saiba que gosto muito de futebol. Costuma vestir calça longa, sapato social e um suéter com vários losangos desenhados mesmo nos dias em que Montevidéu vira o Saara.
Señor Alberto é um pouco reaça, nada que o impeça de ser uma grande pessoa. Gosta da Dilma porque ela “bota a polícia para ir atrás dos traficantes nas favelas”. E eu poderia muito bem dizer: “Bueno, hay que estudiar...”.

Um desses dias comentava que volto a Maceió em dezembro, mas que tenho vontade de voltar, especialmente para conhecer o carnaval. “Mas você vai ficar aqui no apartamento?”, pergunta. “Não, não, mas voltarei para cumprimenta-lo”.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Em seu nome

As ondas do Rio de la Plata sobem e descem
Devagar, rapidamente, devagar
Arriscam um som próprio
Alto, baixo, alto
Como as nossas conversas 

Me acordo com os alarmes dos carros
Que todos os dias insistem em tocar
Levanto, visto algo, penso alto, saio
Você alguma vez também pensa?

Ando em círculos todas as noites
Voltando ao ponto em que você nunca irá
Quando está senta perto
E traz consigo muitas dúvidas

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Um dia atípico em três atos

Corria tranquilamente pela rambla de Pocitos ao som de Marcelo Jeneci - ou seria Los Hermanos? Jorge Ben sei que não era porque já escutei outras vezes e hoje não queria. "Olha, que monumento bonito", penso. Paro para fazer umas fotos rápidas e me viro para retomar o exercício, quando um brasileiro no alto de seus 55 anos me para:

- Você é de Itatiba?

- Não, sou de Maceió.

- Ah, eu vi o que tava escrito no escudo da camisa do seu clube e pensei: é brasileiro.

- Hahaha, sim. Vocês estão passeando aqui? - pergunto aos quatro, já que estavam em dois casais.

- Sim, vamos ficar por quatro dias. Quê que tem dxi bom por aqui? Acabamos de chegar e viemos à praia.

- Vocês estão no melhor bairro, há muita opção de restaurantes....

- Entendi. E onde que compra a marijuana?

- Hahaha, não sei, eu não fumo - respondi, surpreso, porque eram dois homens no alto dos seus 55 anos acompanhados pelas senhoras, que não esboçaram reação.

O outro, mais tímido, solta:

- Eu não sei onde comprar nem no Brasil, imagina aqui.

- Hahaha, pois é. Bem, então vou indo. Boa estadia para vocês e que aproveitem muito.

- Obrigado, bons estudos.

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Já tou cansado, mas vou colocar "Temporal" do Jeneci para que eu não relaxe e vá correndo até o fim. O telefone toca. Meu amigo diz que o Mathias (uruguaio) entrou para jogar no campinho de areia a convite de outros uruguaios. Acelero os passos e chego um pouco já cansado. Entro, enfim, no "beach soccer" e começo a participar do meu primeiro racha em solo uruguaio. Quem diria??

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A fome é inevitável após o rachinha na areia. Na fila do pão, avisto um brasileiro com a camisa do Bahia selecionando algumas cervejas no freezer, provavelmente estava fazendo algum churrasco com outros amigos brasileiros. Gentil, disse que posso passar pela casa deles a qualquer momento.


quinta-feira, 21 de agosto de 2014

Um mergulho na história
















~ No buzão ~

- Já conhece essa região aqui? – pergunta no desenrolar da nossa conversa o simpático senhor uruguaio, no meu trajeto rumo ao Gran Parque Central, estádio do Nacional. 

- Não, ainda não – respondo.

- Aqui é o zoológico. Você vai descer uma parada após a minha e vai andar para a esquerda. Mas é só seguir esses torcedores que estão aqui no ônibus.

- Sim, sim, é só fazer isso mesmo.

- Estamos, agora, na Ramón Anador. Você está gostando da cidade?

- Sim, estou gostando muito da tranquilidade, da segurança e das pessoas.

- Chegamos na Avenida do Centenário. Essa aí (aponta para a direita) é a Avenida Itália. Agora estamos na Garibaldi. Eu vou descer e você desce no próximo, é só seguir os torcedores que estão aqui no ônibus. Foi um prazer.

- Um prazer.

Desço do ônibus e caminho mais ou menos 1 km. A parte de trás do estádio, que dá acesso à arquibancada do “sol na cara”, foge do padrão FIFA: não tem glamour e se assemelha a muitos estádios brasileiros. Assim me parece bom porque demonstra conservar a riquíssima história da cancha do Nacional, palco de episódios como o primeiro jogo de uma Copa do Mundo e um duelo de pistola entre o ex-presidente José Battle e um co-diretor do “El País”, Washington Beltrán. Pior para o jornalista. Mas isso é assunto para outros textos.

Cheguei ao estádio com apenas 30 minutos para comprar ingresso e encarar a fila. Não havia ninguém na bilheteria, mas o caos estava instalado no acesso à arquibancada. Brasileiro que sou, estava agoniado porque pensava que perderia o começo do jogo - e um simpático carrinho me chamou atenção por um instante (foto). Eles, no entanto, calmíssimos. Pisei na arquibancada de cimento a tempo de ouvir a torcida saudando o lateral Fucile, que retornou ao clube após longo período na Europa.

Bola vai, bola vem, chutão, jogo pelo alto, Nacional sem conseguir tocar a bola. Goleou porque aproveitou bem o que criou, mas não apresentou um primor técnico. O Defensor, coitado, esteve indefeso. Seu trio maravilha – Nicolás Oliveira, Felipe Gedoz (brasileiro, diga-se) e De Arrascaeta – não funcionou e a tarde foi pro beleléu: 5 gols na sacola, anotando apenas dois na meta de Munúa.

Papo vai, papo vem, uruguaios simpáticos me viam com a bandeira do Brasil e logo perguntavam se eu era torcedor do Grêmio. Conversei com alguns, todos simpáticos, até esbarrar em um jovem de rastafári e uma ruiva tingida que desenvolveram o “antibrasilismo” após a Copa do Mundo. Sim, mesmo que em pouco número, há gente por aqui que crê fielmente que tivemos influência na punição de Suárez. Uma bobagem.

Eles me pediram para guardar a bandeira porque soava como uma ofensa. Ok, embrulho e guardo, quando um amigo do rasta chega e pede para eu seguir com ela e que seu companheiro estava equivocado. Ele me pareceu ser boa pessoa e conversamos um pouco sobre Brasil, Uruguai e futebol. Até ele deixar um dos últimos recados: “Há duas coisas que você necessita saber: Nacional é o maior e melhor e os carboneros (torcedores do Peñarol) são uns putos, mas sem violência, claro”.

Ah, essa coisa chamada rivalidade que move a engrenagem.

Cantina do Gran Parque Central

domingo, 10 de agosto de 2014

Pai

Pai, tá tudo bem por aqui.

Pode avisar a mainha que já comi, lavei as camisas e cuecas. Acho que isso já responde o interrogatório diário. Pelo que conheço, ela vai ficar com um pouco de ciúme após ler esse texto, mas eu peço a compreensão porque, afinal, estamos longe. Não sou muito de demonstrar o que sinto nas redes sociais, mas essa tal de saudade às vezes aperta e é uma coisa boa de sentir.

É o primeiro dia dos pais que passo longe de você - seu lunga alagoano, como você mesmo escreve nos e-mails - e isso merece algumas linhas.

Tá tudo caminhando bem por aqui. Hoje, aliás, me lembrei de um dia dos pais especial, lá em 2009. Não fomos almoçar fora ou fazer hora na casa de algum parente. Nós viajamos, lembra? Com certeza você não lembra que empatamos e talvez recorde que levamos 3 mil pessoas para Pernambuco. Eu, você e o Felipe encaramos a estrada para acompanhar nosso time, algo que ainda nos rende boas conversas e nos mantêm unidos.

O voo rasteiro foi incrível, das coisas que vão ficar para sempre na minha memória, porque deve ter sido o último jogo que assistimos juntos. Os três. Resolvi, cinco anos depois, caminhar na orla com a camisa do nosso time, uma forma de homenagear você, pelo pai que continua sendo, e meu irmão, pelo pai que foi e sempre será para nós e nossa querida Maria Clara. Alguns uruguaios ficavam olhando, tentando adivinhar o nosso time. Um deles pode até saber, mas jamais terá a noção do que ele representa para nós. Na verdade, acho que você gosta mais do nosso clube do que o jogo em si. Tou errado?

No mais, tá tudo fluindo bem. Os uruguaios são pessoas muito boas, que levam a vida de uma forma simples. É comum observar, na rambla, jovens casais tomando mate nos bancos, velhos casais passeando sem compromisso e hora para chegar, afastando a chatice da rotina. Os cachorros aqui geralmente andam sem coleira, prova de que são educados ao mais simples comando dos donos. Assisti, também, a uma pelada de pivetes aqui na orla. Jogo ruim, truncado, mas foi bom para passar o tempo.

Você, aliás, veio para cá duas vezes e não conheceu a orla. Perdeu muita coisa, eu diria. A água mansa do rio de la plata passa uma tranquilidade boa. Ela deve reforçar aquela sua ideia – não sei se foi na resenha – de se aposentar e vir morar aqui.

Às vezes o frio aperta, principalmente de madrugada, mas te confesso que já estou adaptado, consigo até ir ao mercadinho da esquina sem casaco durante o dia. Mas não tem problema. Depois de agosto, chega setembro e o calor reaparece um pouco. Depois outubro, novembro e, por fim, dezembro, quando estarei de volta. Daqui a pouco passa.

Um abraço e feliz dia dos pais.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Vitrola Montevideo (I)

Essa música é a cara de Montevideo até agora.

Sucessos antigos predominam no repertório dos boliches, que nada mais são que as nossas populares discotecas, digo, baladas.

Se o disco muda e várias canções tocaram ao longo da noite, por que, então, "play that funky music" chamou minha atenção?

A resposta estava lá, naquele sábado (sexta?) passado, no Bluzz Live. Os jovens gritavam e mexiam o corpo para um lado e para o outro de uma forma diferente logo no início da música, pelo menos foi o que eu captei. Para nós, um jeito até engraçado de dançar, já que poucos lugares no Brasil tocam músicas das décadas de 70 e 80, infelizmente.

O Bluzz Live, por sinal, é um barzinho/boate muito simpático na Ciudad Vieja. bairro histórico que dispensa explicações, é só fazer a tradução livre.

Banda Wild Cherry, cujo maior hit foi justamente a música do post

Mudança temporária

Como alguns devem saber, estou em intercâmbio no Uruguai. As coisas vão bem por aqui e a criatividade acompanha o curso do rio de la plata, que separa Montevidéu de Buenos Aires. Para evitar a criação de um outro blog - que sumiria do mapa após os quatro meses e meio em terras charruas - vou seguir alimentando este aqui.

terça-feira, 24 de junho de 2014

O Uruguai vive e pede passagem

Foto: AFP
Pausa nos afazeres do dia. Eu preciso escrever algo sobre a classificação (e recuperação) histórica do Uruguai na Copa do Mundo. Paro na segunda linha e só consigo pensar em frases para o segundo ou terceiro parágrafo. Talvez seja melhor, pois, deixar que mais ideias surjam para o desenrolar. O primeiro não deve importar tanto assim. Vamos pular.

Não pretendo, aqui, falar necessariamente de futebol. Porque - até os americanos estão descobrindo isso - esse esporte transcende qualquer limite das quatro linhas. Faz-se necessário, portanto, um aprofundamento em outras questões – que para você pareçam até mais importantes; para mim? Talvez... E a explicação já foi descrita.

Ouso falar aqui sobre identidade, embora não seja sociólogo ou qualquer coisa que o valha. Existe, porém, razão na admiração?

O Uruguai é um país de pouco mais de três milhões de habitantes, como a minha amada Alagoas. Seus habitantes - ao contrário de nós, ao que parece - possuem uma ligação muito grande com aquilo que lhes pertence: na música, no futebol, na literatura ou na política. Valorizam cada pedaço disso como uma representação do modo de vida: leve e sem pressa. Montevideo não tem um outback, um parque de diversões de quatro hectares ou um shopping de cinco que te obrigue a gostar dela. Há, sim, um convite ao contato com o acolhimento de cada um dos uruguaios - tirando os carneiros podres, claro. Na verdade, é sobre a receptividade que você vai falar depois para outras pessoas depois que voltar para casa.

É preciso, pois, resistir. Sempre. À tolice, à arrogância, à prepotência dos grandes e das potências. Talvez seja por isso que me divirto quando vejo um garoto de uma cidade pequena como Luis Suárez driblar um, dois, e meter a bola no fundo das redes, ou até mesmo quando aquele volante brutamontes baixinho (típico camisa 5 uruguaio) avança sobre o meia habilidoso do adversário e rouba-lhe a bola em segundos. É, no fundo, a coragem de ousar de um pequeno país que empina o nariz diante de um grande e quase sempre vence as batalhas.

Com classe, sem covardia, com teimosia e sem desistir, como diz um trecho da música “Cielo de um solo color”, da banda No Te Va Gustar: “ Hay algo que sigue vivo/Nos renueva la ilusión/ Y en el último suspiro/Ay, celeste, regaláme un sol...”

Um último suspiro, como a última batalha de José Artigas ou a cabeçada de Godín aos 36 do segundo tempo contra a Itália.

Abaixo, música "Cielo de un solo color" cantada pelos uruguaios em Natal, local da partida contra a Itália: 


terça-feira, 25 de março de 2014

Alagoas sob a lente do cineasta Cacá Diegues

Cenários, personagens e ideologia fazem parte da memória do diretor e roteirista maceioense

Em pé sobre a sua canoa “Tira Teima”, o inquieto Taoca se espanta quando Deus revela o desejo de ir à feira de Penedo. Para, reflete rapidamente e se vira para o seu interlocutor. Sem pensar duas vezes, dispara: “O senhor sabe que feira é coisa de antigamente, né? Coisa de zé povinho”. O pescador interpretado por Wágner Moura é mesmo um sujeito ousado.

A cena do filme “Deus é brasileiro” - adaptação da obra de João Ubaldo Ribeiro - revela um pouco da relação umbilical entre o cineasta e roteirista Cacá Diegues e sua terra natal, Alagoas. Tanto Deus quanto Taoca apresentam traços característicos da “alagoanidade” ao longo da película.

Enquanto o criador representa o típico maceioense da alta sociedade - com a voz grave e jeito imponente - a criatura, fraca, possui trejeitos típicos do cidadão interiorano, com a incapacidade de se comunicar sem repousar a mão sobre a cintura ou remexer os braços.

Para o jornalista alagoano Luiz Gutemberg - que já trabalhou no Jornal do Brasil e na Veja -, Taoca é um dos personagens mais engraçados que Alagoas já teve. “É um personagem com uma graça muito grande, sempre com a ‘alagoanidade’. Os traços do Fagundes também são muito alagoanos. É uma transposição para a nossa realidade”.

A tão falada “alagoanidade”, no entanto, transcende os traços dos personagens. Em suas obras, o cineasta explora até a última gota as belezas naturais de Alagoas. As paisagens remetem à infância do garoto Carlos, em suas andançascom os pais pelo interior do estado. Quando adulto, o filho da terra decidiu projetar aquelas mesmas sensações que teve quando pequeno para a apreciação e deleite do seu público.

Em Bye Bye Brasil, a arte imita a vida

Crédito: Divulgação / Site oficial Carlos Diegues
Também na infância, quando morava em Maceió, Carlos herdou o apelido “Cacá”, já que o irmão Fernando não conseguia pronunciar seu nome corretamente. Disseminada rapidamente na escola e durante toda a juventude, a alcunha foi rejeitada mais tarde por razões óbvias.

Convidado para ser júri no Festival Internacional de Cannes - no início da década de 80 – o alagoano não escondia a satisfação e o nervosismo. Enquanto seus colegas subiam os degraus da imponente escadaria, o cineasta se atrasou por algum motivo e recebeu um puxão de orelhas do amigo Gláuber Rocha: “Cacá! Cacá! Vem!” . A plateia caiu na gargalhada e, embaraçado, decidiu que daquele dia em diante seria Carlos Diegues: Cacá, em francês, remete a cocô.

Ao contrário do apelido, Cacá Político aproveitador (à direita) revela que a obra de Cacá é atemporal não tem vergonha de expor as mazelas da sua terra nas produções. Em “Bye Bye Brasil”, a caravana Rolidei desembarca na cidade de Piranhas para uma única apresentação à noite. Convidado indispensável, o prefeito da cidade se aproveita politicamente quando Lorde Cigano faz nevar na plateia. “Está nevando na minha gestão”, declara o radiante político ao lado de sua dama na primeira fila.

Não seria possível retratar fielmente o estado apenas com os trejeitos e personagens alagoanos. A adaptação exige ainda o uso das gírias locais. Certamente, qualquer forasteiro sente dificuldade em compreender o significado do verbo “bulir” ou da expressão “zé povinho” aliado ao sotaque arrastado de Taoca e Madá. Quando o irmão da pobre moça faleceu, o velório mostrou outra face da cultura alagoana: o acolhimento por parte da família - no próprio lar - dos parentes e amigos. 

O auge da relação ainda estava por vir. O plano geral na praia da Avenida, em Maceió, deixa bobo o sanfoneiro, que pergunta a Lorde Cigano se poderia molhar os pés na água. O malandro, assustado, não perde a oportunidade de dar uma lição de moral em seu pupilo: “Não. Mar de cidade é cheio de cocô. Altamente poluído”. A imagem, então, mostra a língua negra desaguando toda a sua podridão no mar. A arte imitando a vida.

Reportagem escrita para obtenção de nota na disciplina Edição em Mídia Impressa, da Ufal.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A indignação seletiva e o nosso mea culpa

O que mais choca na morte do empresário Guilherme Brandão, para mim, é a indignação seletiva que desperta dentro de cada um dos maceioenses quando alguém da alta sociedade é assassinado. Não quero dizer aqui que devemos ser passivos. Longe disso. Todo e qualquer assassinato é uma tragédia para as famílias envolvidas, seja na Ponta Verde, seja na Levada.

Há critérios muito bem estabelecidos que ajudam a aumentar ou reduzir o grau de importância que damos às vítimas de assalto ou assassinato. Primeiro, é necessário ser da família. Segundo, basta ser um colega, um primo distante, o filho de um tio de consideração ou um conhecido de bairro. Por último, entram os ricos e conhecidos da cidade. Isso me parece óbvio e ululante. Não digo que está certo ou errado. O incorreto, repito, é a indignação seletiva.

Morreu um dos nossos parentes? Esse bandido cretino e filho da puta tem que morrer. Assassinaram um empresário? Caramba, é inacreditável. Três jovens em um carro preto da moda atiraram e mataram três mendigos? Rodapé do jornal. E isso pode ser explicado: as empresas de comunicação servem aos interesses das classes média e alta, embora os programas “policialescos” tentem passar a ideia de que são feitos para o povão. Balela. No fundo, o pobre não tem voz, vez ou espaço. O seu desabafo, meu filho, dura três minutos na matéria, sem direito a passeata ou investigação aprofundada para encontrar e punir os responsáveis. Ficou claro?

Há, também, uma pitada de subjetivismo exarcebado e individualismo nisso – que se revela todos os dias nas nossas pequenas atitudes, com a nossa enorme dificuldade de separar o público do privado. O sinal está fechado? Fecha-se um cruzamento. A fila tá grande? Ultrapassa pela contramão e mete o bico do carro na frente do primeiro. A atendente deu grana a mais no troco? Dane-se a moça, ela que se vire depois. Morreram 20 pessoas ontem, mas não conheço nenhuma? Esse problema não é comigo...

Defendo a tese de que nós, alagoanos, estamos com os pescoços envoltos por uma corda - engolfados pela violência de verdade, como bem descreveu o jornalista Plíno Fraga, da Revista Piauí, em reportagem especial. Morre um conhecido, amigo ou parente e ela nos aperta, desafogando automaticamente a de outra família. Assassinaram o Guilherme? Os parentes estão fortemente pressionados. Um dia, passa para outra casa. E assim sucessivamente. Nesse nó da violência social, ainda não encontramos o instrumento para cortá-lo, fazemos apenas remendos.

Para diminuir a escalada de violência, não adianta defender a execução em praça pública do assaltante de mercadinho. Se você aceitou viver em um estado democrático de direito, defenda o processo jurídico legal para todos, sem distinção de classe social ou cor. O subjetivismo exacerbado – a exemplo do clamor pela justiça cm as próprias mãos - é um dos grandes responsáveis pelo enfraquecimento das instituições e a dificuldade de estabelecimento e aplicação de normas. Não é uma versão verdadeira e definitiva, frise-se. Mas, para mim, o “individualismo exagerado” é um dos males que afetam diretamente todo o nosso cotidiano.

A possibilidade de modificar a realidade caminha a passos curtos a cada quatro anos. Não adianta, em outubro, votar em um tio porque ele é o seu tio, mesmo que seja um grande corrupto; dar o voto em troca de um cargo comissionado ou ajudar a eleger o "menos pior". Separar o público do privado – e ter a plena convicção de que o Estado não é uma ampliação do quintal de casa – continua sendo o grande desafio e dá a impressão de ser um sonho ainda distante.

Prova disso é o governador de Alagoas, Teotônio Vilela, determinar que o secretário da Defesa Social, Eduardo Tavares, e o delegado-geral Carlos Reis, assumam pessoalmente as investigações do caso,  ao lembrar que guarda um grau de parentesco com o pai da vítima. Mais uma vez, utilizar o público para interesse pessoal.

Não tratei do nosso histórico de violência, do atraso social e econômico - com uma economia dependente das safras do setor sucroalcooleiro – por razões óbvias. É um debate já saturado que também ajuda a compreender as mazelas sociais que assolam Alagoas e o Brasil. Nada disso, porém, é uma versão definitiva ou capaz de explicar a nossa sociedade doente.

Tudo isso que está escrito acima não significa que devemos ignorar o assassinato de Guilherme. Longe disso. Os responsáveis pelo crime devem ser identificados e punidos. A família da vítima vai ter de conviver com essa dor até o último dia da sua existência.
As referências e elogios ao empresário são as melhores possíveis.

É mais uma perda para uma família alagoana e um número nas estatísticas do nosso querido estado com índices de guerra civil. A corda apertou na Ponta Verde nesta quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014. Ding dong! Atenção, pode ser a da sua casa.