quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

malagueta

Nasceu um pé de pimenta na frente de casa. Está semicercado por pingos de ouro. Ninguém daqui de casa pôs a sementinha, por isso o mistério.Tínhamos um abacateiro no quintal, mas virara alvo constante dos cassacos e sofria desgaste pelo tempo. Meu pai desconfia que foi algum passarinho. Um sabiá, para ser mais específico, teria levado a malagueta para lá. Pode ser, uma vez que eles fazem morada na praça em frente. É curioso que um pássaro possa apreciá-las. Deve ser por isso que o sabiá canta rapidamente...

O processo de amadurecimento demora um pouco. Retiramos uma ou duas laranjas-vermelhas para consumo diário. Arde bastante, sobretudo quando damos uma dentada no caroço. Parece aquele jogo de campo minado. Basta não diluir bem e vira obrigação tomar dois goles de suco. Hoje, pensamos diferente. Sacamos umas dez para fazer um molho, porque outras duas estavam com a ponta mordida. Misturamos azeite (pode ser vinagre branco), sal e alho (pode ter cebola). O resultado sairá daqui a uma semana. Sei que sobraram apenas as verdes no pé. Pobres dos passarinhos.

domingo, 22 de novembro de 2015

prioridades

Quando não tem nada para fazer, o maceioense vai à Bienal, visita livrarias, percorre corredores para comprar discos e livros. Que serão devidamente colocados, com plástico e tudo, de forma horizontal no fundo da prateleira da sala de leitura. Onde permanecerão inertes e sujeitos passivos, jamais ativos. Quando, enfim, ganharão algumas manchas com o ciclo fatalístico de verão a verão. Findo o trabalho, o maceioense se dedica ao que tem de melhor para fazer: se esbalda no sertanejo com long necks no balde, gasta tempo na igreja ou vai ao cinema ver a nova comédia global.

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Nunca ao norte

Eu vou pegar minha viola, puxa a cantora. Eu vou, eu vou, contesta a plateia. O coro não demora a preencher todo o salão do coletivo. Os tambores invadem a mansão da timidez. Há uma menina cujas mãos não querem desprender dos lados da saia. Saia longa, meio vermelha, com arte rupestre ou africana, não se sabe ao certo. A cabeça faz Leste-Oeste mais rápido que chocalho, mas nunca aponta para o norte, onde estou. É das mais bonitas que já vi dançando nesse jeito louco. Os pés agitados casam com a inquietude que me assume. Há um só problema, um problemão que atende por namorado. Não me causa espanto. . 

domingo, 11 de outubro de 2015

Les plus beaux mots en français

jusqu'à
ce
qu'il y a
l'utopie
quand
nous
ne
sommes
pas
ensemble

sábado, 10 de outubro de 2015

Indispensáveis

coração
oração
ração
ação
cão

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Sapiência

Procuro ser
desinteressante
para as pessoas
Só assim
faço com que
sumam
de mim
e eu lamente
amargamente
talvez
eu goste
mesmo é disso:
diminuir riscos
alargar distâncias

segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Fenômenos

Os escritores são pessoas pouco normais que precisam textear com metáforas para que haja algum sentido. Eles dizem que


O sol nasceu feito
maracujá gigante
espremendo
tranquilidade
E que a sua
saída no sertão
corrói o céu
E que a lua é
a única
rolha
capaz de nos
embriagar

domingo, 30 de agosto de 2015

Devaneios regulares

- Não há felicidade sem dor. Apaixonar-se por poeta é como nadar no São Francisco. Tragar cigarro não preenche buracos de solidão. Ouvi tudo isso no rádio. Intrigante, não?

- Tudo bonitinho para clichê. Mas felicidade não existe, só momentos felizes. Essa lição pode ser aprendida logo no início da vida com Odair José.

- É como buscar estrelas em cidade grande. Sempre vai ter uma lua onde se conformar.

Luana estava no chuveiro há poucos minutos. O sabonete se espatifara em pedacinhos e um deles calhou de grudar no box. Pressionara-o entre o polegar e o indicador. Só então percebeu que o vidro desembaraçava. Escorregou as mãos sobre os peitos para espalhar a água enquanto deixava os ombros encharcarem. O espelho aconselhava mudanças.

- Sabe aquela história de exercícios para aumentar o nível de confiança e autoestima?

- Por onde vai começar dessa vez?

- Caminhadas regulares.

- Está bem.

- O desdém segue sendo seu mantra.

- Você não consegue viver sem a bebida, o cigarro e mim. São as três principais drogas. É nisso que acredito.

- Já superei piores.

- Vá em frente. Se tiver sucesso nas duas primeiras empreitadas, espero que não alcance a terceira.

Juliano desgrudou os pés do chão para alcançar a mesa, onde largou a revista semanal. Alcançou palitos de dente e o controle da TV.

- “Polícia prende homem suspeito de assassinato da filha de empresários do ramo imobiliário”

- Tome esta família como exemplo. Os pais trabalharam duro para construir algo e resolveram ter filhos. Eles nascem, recebem brinquedos, fazem festas de aniversário e atravessam continentes. Um dia, tudo isso acaba a facadas.

- Dez minutos que vão ecoar por toda uma vida.

- Exato. Parece haver sempre alguma compensação na vida.

- Como um troco por aquilo que você fez a alguém?

- Pode ser. Até mesmo mais que isso. É preciso andar com o ceticismo lado a lado. Não pode estar à frente para não te deixar parado em uma cama ou atrás para não te pegar desprevenido.  

- Quando você vai voltar a escrever? Essas conversas sempre rendem bons contrapontos.

- Breve. Sou um escritor pessimista, mas as pessoas também procuram temas assim por alguma razão. Não só de autoajuda sobrevivem as livrarias, embora esses livros ocupem as estantes onde você mete o olho imediatamente assim que entra em uma delas.

- Deve rolar uma identificação por parte daquelas que frequentam bares mais alternativos e submergem nos temas.

- As pessoas que mais duvidam esgotam os sofás dos psicólogos.

- E as mais distraídas são as mais felizes.

domingo, 23 de agosto de 2015

A margem

eles pensam que
me forçando:
- útil, vá
fazer algo útil
eu vou ficar
à margem da vida
como eles, que
sentam
fecham-se e
se calam

se me encanta
mergulhar,
tocar o fundo
com a mão
e voltar a ficar
submerso,
flutuar e
emergir,
não é de
estranhar que
eu deteste
apenas terra
firme

é preciso ingerir
o líquido salgado
para distingui-lo do
normal
afogar-se em
meio a
correntezas
da areia, eles
apenas enxergam:
“Praia perigosa”

sem ousar ou
pôr tudo a perder
a vida fica
gasosa

Teu nome me
persegue até nas
fichas da academia

sábado, 18 de julho de 2015

Tudo passa ligeiro

O cinto está preso
imóvel
Desde o dia do
inevitável fim

Se for pego
em uma blitz
a ocorrência se
dará por sua
ausência

Há ocasiões
por certo
em que alguém luta
e o prende com força
por breves corridas

Só viagens curtas
Nada de trajetos
Demasiadamente longos
e enfadonhos

Tudo, afinal, é
passageiro
Tudo passa
ligeiro

domingo, 28 de junho de 2015

Vai sobrar alguém?

A caminhonete branca repousa sobre a zebra pintada no asfalto. Não poderia estar ali, penso. Especialmente quando o semáforo está vermelho, concluo. Ronca baixinho para depois fazer crescer o ruído próprio dos elegantes. Todos os vidros escuros estão fechados. É noite.

Um homem tenta atravessar a faixa pela frente da lata imóvel. A Amarok acelera alguns passos. O pedestre fixa os olhos no motorista e dá meia volta. Está zangado. Abre o sinal, segue o jogo.

A branquinha engole as próprias passadas na avenida. Corre como quem sofre de diarreia súbita. O semáforo insiste no vermelho. Acelera mais um pouquinho, vai dar. Passa incólume.


Atrás, em letras garrafais, anuncia: “Fora CorruPTos”. 

Então, nesses casos, pergunto: vai sobrar alguém?

segunda-feira, 22 de junho de 2015

qualificado

O menino
pegava nas vitrines
apenas sonhos

domingo, 14 de junho de 2015

Haicai

Diz sim e sorri
Com a cabeça
Sobre meu peito

terça-feira, 9 de junho de 2015

Esses

Sei sobre seu singelo sorriso
Será saudade, será solidão?
Suponho ser são

sexta-feira, 15 de maio de 2015

Aquilo que Eu não sei nomear

Saudade: s.f. Sentir n'alma
Aplicação: Quando eu deslizava o indicador esquerdo nas tuas costas

domingo, 10 de maio de 2015

Dia de quem trabalha a dor

Sexta, primeiro de maio, dia aberto, sem pancadas de chuva. O sol marca posição sobre os prédios. É um dia para se divertir, dizem especialistas - e chefes de família. Acorda a criança, vamos à praia. Café da manhã ok, roupa ok, e toalha de banho idem. Destino: praia de veraneio.

O carro, apressado, engole passos sobre a pista. O som está sintonizado na rádio mais erudita possível. Talvez tenha tocado Djavan, Tribalistas ou músicos da cena local. Todos chegam em vinte minutos, estourando vinte e cinco. Para a felicidade doce, ingênua e correta da menina, que adora subir castelos na areia e tomar uns caldos.

- Abre a mala porque tem muita coisa. Lúcia, os brinquedos estão lá, vamos pegá-los – diz a senhora.

Família bem acomodada, mesa à frente do mar. Prontos para o pedido. O sinal com as mãos chama o garçom. Tudo normal, não tivesse o atendente um metro e meio. Um metro e meio e um rosto liso, sem as menores intempéries provocadas pelo correr dos dias e noites. Sem qualquer sinal de barba ou bigode, voz aguda.

Cara de quem, obviamente, não brinca em serviço em seu dia de trabalhar a dor. 

segunda-feira, 4 de maio de 2015

Cabelo

O cabelo ao chão sempre parece pior que o da cabeça. Não passa de um amontoado, um tufo. Não que o meu seja bom. Não é. E é ruim em qualquer situação, mas ainda dá para cuidar um pouco. Leva mais ou menos um mês para crescer e começar a me incomodar, aí você vai ao cara que corta e tudo pode estar pronto em uns 10 minutos. É injusto. Bem que poderiam crescer no mesmo ritmo que o pelo da cara.

Ultimamente, tenho ido quinzenalmente ao Marcos, o rapaz encarregado de me inserir socialmente outra vez. E de recuperar a autoestima também. Acho que ele tem entendido um pouco errado aquilo que quero e deixado um pouco maior do que deveria. Eu estava pronto para escrever “mais grande” em vez de maior, é um pouco do vício do espanhol, ao qual estava habituado a falar há algum tempo. Aliás, já perceberam como os cortes da moda sempre atendem ao desejo de uma minoria? A maioria não se encaixará nesses padrões. Nunca.

Há influências muito claras neste texto de um escritor ordinário americano, perceberão os mais curiosos. A diferença é que não costumo pincelar os meus com merda, porra e muitos outros palavrões. Voltando ao que interessa, garanto: tomar banho quando o cabelo está baixo, muito baixo, está entre as melhores sensações que alguém pode experimentar. É boa, aquela corrente de água gelada. Mas há algum tempo não sei bem o que é isso.

domingo, 18 de janeiro de 2015

Muelle

Ele a puxou usando apenas os olhos. Não precisava de mais nada, como agarrar os braços contra a vontade dela. Sabia que se entendiam bem, dispensando até mesmo palavras. Ela virá e não tomará esse gesto como uma ofensa, pensou. De fato, Cora não deu as costas. Estavam ali, na rua Paseo de San Gabriel, caminhando vagarosamente pelo calçadão, cerca do Rio de La Plata. Ficou feliz por ela ter ficado elo menos para uma conversa.

- O que você quer?

- O que você diria?

- Sobre o quê?

- Sobre estarmos aqui, em Colônia do Sacramento. Eu me perguntava: quando vou trazê-la aqui?

- O sol se pondo talvez seja o indicio de que está um pouco tarde, não acha?

Martin pensara imediatamente no muelle da cidade, que não fazia ideia do que fosse quando ouviu essa palavra pela primeira vez. Sabia apenas que os uruguaios pronunciam o "ll" como "x". Há sempre alguns barcos e jovens que se reúnem aí para ver a despedida do sol mais bonita do mundo, disseram-lhe. Não pagou para ver, porque mesmo que se considere o céptico dos mais cépticos, o acesso é livre. Sentou-se no piso de madeira, que deixava brechas entre uma peça e outra, mortais para uma mulher de salto alto. Mas quem estaria ali com um sapato assim? O fato é que se minha carteira cair aqui estou perdido, imaginou. Esperou pelo fim da jornada de trabalho da esfera amarela. A cidade para para assistir à despedida, é um evento que não se cancela. Vai se despedindo rapidamente, dependendo do ponto de vista. Os barcos mais próximos da doca desaparecem, depois a própria doca e, por fim, a bola de fogo, a esta altura nada mais que faísca.É realmente lindo, dessas coisas que eu deveria fazer com Cora algum dia, pensou.

- Falando nisso, você já foi ao Muelle no fim da tarde?

- Você já me levou lá. Anda esquecido?

- Muda esse olhar de adeus, Cora. Veja aquele velhinho que sentado ali na esquina, com aparência de 80 anos. Deve ter passado pelo portão da cidade, tomado um sorvete caseiro ali perto e caminhado pela praça gigante do bairro histórico até chegar ao seu martírio final. Sequer tem a companhia de um cachorro, já que esse animal vive a brigar por território nessa cidade. Das duas, uma: pode ter esperado demais ou optado por viver na amargura. Sobreviver, na verdade, porque o viver não tem significado dessa forma.

- Você trabalha muito com o condicional. Não penso assim, certamente vai chegar alguém.

O caminho de volta os levou até o farol da cidade. Ainda havia muitos turistas na fila. Paga-se 20 pesos uruguaios para subir até o topo, num caminho apertado de degraus verdes. Por vezes, é necessário curvar o corpo. A vista lá do alto é compensadora. Eucaliptos margeiam o ponto turístico, e as casinhas da cidade ficam ainda mais horizontais e pequenas nas ruas de paralelepípedo do bairro, que é a própria história. As colonizações espanhola e portuguesa convivem harmonicamente, pelo menos nos dias atuais e vindouros, assim esperamos. Quanto mais os visitantes sobem e maiores forem os obstáculos, maiores também a expectativa e a recompensa. A vida, pois.

Tudo já estava preto, e naquela época do ano, no inverno, as estrelas não costumam dar as caras.

- Eu já estou indo amanhã. Você quer viajar comigo de novo? – perguntou Martin.

- Para amar plenamente é necessário ter boa digestão. E eu nunca tive gastrite, você bem sabe – respondeu, de pronto, Cora. Pelo menos foi assim que ele imaginou se ela estivesse fisicamente ali.